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A não incidência do ICMS nas operações de transferência de mercadorias entre estabelecimentos pertencentes ao mesmo contribuinte, a insegurança jurídica criada pelo TJMS e a necessidade da ratificação do tema pelo STF há muito consolidado pelos tribunais

Por: Luiz Brito Filho e Daniel Pasqualotto.

Publicado em: 04/09/2020

Primeiramente, cabe destacar que a tese não é nova, embora os Estados, continuem a exigir referida exação, já reconhecida incidentalmente como inconstitucional.

É certo que o fato gerador do ICMS ocorre no momento da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, desde que referida saída incorra em transmissão de titularidade ou expressão econômica, portanto, equivocado dizer, que, da mesma forma, ocorre quando a saída seja de um estabelecimento para outro, do mesmo titular, a título de transferência.

Isso porque a configuração da hipótese de incidência do ICMS sobre a realização de operações relativas à circulação de mercadorias, reclama a ocorrência de ato de mercancia, vale dizer, a venda da mercadoria.

Nesse sentido é necessário citar lição do Professor Paulo de Barros CARVALHO, que define acerca dos termos “operações”, “circulação” e “mercadorias”:

“’Operações’, ‘circulação’, e ‘mercadorias’ são três elementos essenciais para a caracterização da venda de mercadorias. Tenho para mim que o vocábulo “operações”, no contexto, exprime o sentido de atos ou negócios jurídicos hábeis para provocar a circulação de mercadorias. “Circulação”, por sua vez, é a passagem das mercadorias de uma pessoa para outra, sob o manto de um título jurídico, com a consequente mudança de patrimônio. Já o adjunto adnominal ‘de mercadorias’ indica que nem toda a circulação está abrangida no tipo proposto, mas unicamente aquelas que envolvam mercadorias”. (Curso de Direito Tributário, Editora Saraiva, São Paulo, pág. 648).

Inclusive este assunto consagrou o entendimento no Superior Tribunal de Justiça – STJ, há muito pacificado, que levou a edição da Súmula nº 166, no sentido de que a mera saída de um bem do contribuinte para outro estabelecimento de sua titularidade não se enquadra na hipótese de incidência do ICMS, veja-se:

“Súmula 166. Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte”

Ocorre que, conforme dito inicialmente, apesar da clareza solar da Súmula nº 166 do STJ em determinar a não incidência do ICMS nas operações de transferência de mercadorias entre estabelecimentos de mesmo contribuinte, os Estados insistem em exigir referida exação nestas operações. 

Mas não para por aí, já que para a surpresa de todos, e aqui faz-se referência ao Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul, a Súmula nº 166 do STJ é equivocadamente afastada por aquela E. Corte, sob os argumentos de que sua edição se deu em momento anterior à Lei Complementar n. 87/1996 (Lei Kandir) que dispôs sobre a incidência do ICMS na saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular.

Também, existiram ocasiões que aquela Corte afastou equivocadamente a Súmula nº  166 sob o argumento de que este enunciado trata somente das transferências de mercadorias localizadas em um mesmo ente federado que, aliás, foi a linha seguida no acórdão proferido na apelação em mandado de segurança nº 0800666-84.2017.8.12.0026 que levou o STF confirmar no julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1255885, com repercussão geral reconhecida (Tema 1099), que o ICMS apenas incide nos casos em que a circulação de mercadoria configurar ato mercantil ou transferência da titularidade do bem, situação não evidenciada nas operações de transferência entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, entendimento consagrado há tempos pelo STJ.

Notem, portanto, que apesar dos argumentos exposados nos acórdãos proferidos pelo TJMS quando relacionados a este tema, com a devida vênia, aquela E. Corte falhou ao indevidamente afastar a aplicação da Súmula nº 166 do STJ dos casos em ocorreram transferências interestaduais de mercadorias entre estabelecimentos, pois a natureza destas operações, sejam elas internas ou interestaduais, não constituem fato gerador de ICMS, ou seja, o mero deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos de propriedade do mesmo contribuinte não configura circulação de mercadoria, portanto, irrelevante que a origem e o destino estejam em jurisdições territoriais distintas.

Isso porque apesar da Súmula nº 166 do STJ ter sido emanada antes da edição da Lei Complementar nº 87/96, tal enunciado permanece aplicável à hipótese vertente, na medida em que os julgados em que se baseou, fundavam-se justamente na impossibilidade da tributação do ICMS em remessas de bens entre estabelecimentos de um mesmo titular pois faltavam-lhe a natureza de mercancia na operação, requisito ensejador da hipótese de incidência do referido imposto, portanto, tidas como irrelevantes a origem e o destino das jurisdições territoriais, sendo que, inclusive, tal entendimento foi reiteradamente aplicado pelo E. STJ, até mesmo em função do acórdão em sede de Recurso Repetitivo pelo Tema 259 – REsp nº 1.125.133/SP.

Ora, e não poderia ser diferente já que o contribuinte de ICMS tem o direito subjetivo de só ser tributado após a ocorrência da operação mercantil e sem ela o dever de ICMS não nasce já que seu fato imponível só se completa com transferência de titularidade da mercadoria, fato jurídico que não é evidenciado nas operações de transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular, independentemente se ocorridas de forma interna ou interestadual. Tanto é, por exemplo, que nas operações de compra e venda para entrega futura o ICMS só nasce quando da efetiva tradição (entrega) da mercadoria ao destinatário.

Nem poderia ser admitido, também, como evidenciado em alguns jugados do TJMS, que a exigência do ICMS nas transferências interestaduais seria admitida como mecanismo fiscalizatório para evitar que eventual contribuinte (produtor rural) se beneficie da regra do diferimento do imposto nas vendas internas e, no momento anterior à venda, transfira a mercadoria (rebanho) a outra propriedade (estabelecimento do mesmo titular) situada em estado diverso, deixando o Estado de Mato Grosso do Sul de receber o imposto das etapas anteriores.

De novo, a operação jurídica que deveria ser analisada pelo TJMS seria a adstrita à relação jurídico-tributária ocorrida no caso específico, ou seja, a transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular e se tal operação no mundo fenomênico tributário seria criadora da hipótese de incidência do ICMS, tema há muito consagrado nos tribunais superiores, mas não de certa forma condicionar a não incidência do ICMS nestas operações a uma garantia na arrecadação do imposto na eventual ruptura de regras de diferimento aplicadas nas operações anteriores

Significa dizer que, não poderia, portanto, o Estado do Mato Grosso do Sul, ou mesmo o poder judiciário exercer por via oblíqua à função fiscalizatória daquele, exigir o ICMS nas operações de transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular tão somente para garantir o recolhimento de eventual imposto que seria devido em operação diferida que a antecedeu. Isso porque o Estado, por meio da Secretaria de Fazenda, além de possuir regras específicas dispostas na legislação estadual, também possui ferramentas mais do que necessárias para fiscalizar o contribuinte por suposto descumprimento da legislação no tocante ao encerramento do diferimento de ICMS nas operações que antecederam a transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte não sujeitas à incidência do ICMS.

Ora, a cobrança de tributos – principalmente a avalizada pelo judiciário (TJMS) - por meios que fulminam os direitos fundamentais do contribuinte, representados por sanção política, não deve ser tolerada no Estado Democrático de Direito, uma vez que é medida autoritária, ilegal e inconstitucional inclusive, rechaçada pelo STF, veja-se:

“É inconstitucional o uso de meio indireto coercitivo para pagamento de tributo – “sanção política” 
(Tese definida no RE 565.048, rel. min. Marco Aurélio, P, j. 29-5-2014, DJE 65 de 9-10-2014, Tema 31.)

Deste modo, o TJMS falha ao legitimar a incidência do ICMS nas operações de transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular sobre o fundamento de que o Estado seria prejudicado no recolhimento de ICMS diferido em operação anterior à de transferência de mercadorias. Falha, até mesmo, quando afasta indevidamente a aplicação da Súmula nº 166 do STJ dos casos que tratam exatamente sobre o tema aqui debatido.

Em matéria tributária no país, podemos ressaltar que a desinteligência entre instâncias judiciárias não é algo novo. Ao contrário disso. Os próprios tribunais superiores, por vezes acabam por mudar paradigmas assentados por outros, sendo certo, inclusive, que medidas implementadas no ordenamento jurídico pátrio, em especial com a edição do Novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015), nem sempre são capazes de sistematizar um sistema de precedentes de aplicabilidade prática.

Na esteira do parágrafo anterior, podemos elencar inúmeras decisões do Superior Tribunal de Justiça fundadas no rito de recursos representativos de controvérsia, nos termos do artigo 1.036 do NCPC, que “pacificaram” matérias de ordem tributária por anos, e, após tentativas exitosas das procuradorias de fazenda em darem conotações constitucionais a quaisquer matérias perdidas no STJ, conseguiram levar a julgamento tais matérias e as modificarem no STF.

Ainda quanto a esta problemática, outro mecanismo importantíssimo introduzido  pelo Novo Código de Processo Civil, foi a obrigatoriedade de os juízes e tribunais em observarem as decisões firmadas pelos tribunais superiores (artigo 927 do NCPC), onde em última análise, o termo “observar” do mencionado dispositivo poderá ser substituído pelo verbo “aplicar”. 

Por fim, ante aos argumentos desposados, inclusive pela falta de segurança jurídica de um sistema que pouco se importa com precedentes de tribunais superiores e produz decisões que estão sempre sujeitas a uma reanálise do Supremo Tribunal Federal, os contribuinte, em especial os sul-mato-grossenses,  devem celebrar a acertada e necessária decisão proferida nos autos do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 125588, a despeito de que o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul entenda de forma diversa. É que em última análise, ou a jurisprudência de dito tribunal se amolda ao referido julgado pelo STF, ou esta última corte reformará suas decisões em sentido diverso.

1.230.957/RS, julgado em 2014 no rito do artigo 543-C do CPC/73.